O vídeo matou as estrelas do rádio

É cedo pela manhã. Ligo o notebook para começar a escrever algumas linhas antes de iniciar os atendimentos do dia. Por rotina, abro alguns jornais para ver as notícias, ler alguma coluna de interesse e, inevitavelmente, acabo deslizando para alguma rede social “só para ver o que andam dizendo das notícias”. Apenas após concordar com muitos comentários indignados e discordar de outros, lembro-me que havia aberto a tela para escrever. Ufa! Esta foi por pouco. Mas, nesta arriscada olhadela pela teia, uma imagem me chamou a atenção: um meme dizendo que assistir a vídeos e séries em velocidade aumentada era um vício digital, tal qual o crack.

Realmente, não tem sido incomum ouvir, no consultório, queixas relacionadas à ansiedade percebida durante conversas, relatos da dificuldade de manter a atenção no que diz o outro, caso seja um texto longo ou um áudio muito descritivo. Não por desinteresse, mas simplesmente porque tudo parece lento demais. A resposta à conclusão do pensamento precisa acontecer em alta velocidade, sem pausas, sem considerações, sem aprofundamentos, sempre ansiando pelo final. Assim mesmo, sem pausas para respirar, nem mesmo na leitura.

Isso não é estranho a estes tempos nos quais a informação precisa ser consumida aos goles. O podcast pode ser acelerado; o vídeo de 10 minutos, engolido em 5; o texto, resumido à superficialidade; as conversas, abreviadas ao puramente procedural. São soluções que reduzem a vida a um espaço técnico, visando a uma comunicação até mesmo higiênica e, pretensamente, previsível. Uma forma sintética de se relacionar com o mundo, que tem como base a incessante promessa de satisfação dos desejos — se não com objetos do consumo, com informação. Esta nova forma de consumo, que muda seu objeto predileto da coisa para as “não-coisas”, como denominou Byung-Chul Han, não perde a lógica do consumo como agente que desfoca temporariamente a falta. Ou seja, mesmo com o consumo da informação, permanece a lógica de uma oferta levada à proporção de imperativo: Consuma ou devoro-te!

Lacan não foi o primeiro a explorar, a partir da linguística, o discurso como o produto — e produtor — de um laço social. O campo conhecido hoje como análise do discurso conta, neste sentido, com trabalhos produzidos por Michel Foucault, Louis Althusser, Michel Pêcheux e Émile Benveniste. Mas, certamente, a contribuição lacaniana, ao descrever de forma esquemática como o sujeito se relaciona dentro de quatro principais laços sociais — os discursos —, possibilita tanto aprofundar o estudo clínico de cada caso como também interpretar o espírito de cada tempo¹.

Em 1972, numa conferência em Milão, Lacan acrescenta ainda um quinto discurso que representaria a forma de laço fomentada pelo capitalismo. O discurso do capitalista seria uma variação do discurso do mestre, mas com algumas particularidades muito interessantes para nos ajudar a pensar esta, cada vez mais, atual relação com a informação. O discurso do capitalista é paradoxal se comparado aos outros quatro formatos discursivos descritos por Lacan, pois, embora os discursos sejam uma representação da posição do sujeito frente ao laço social, este quinto discurso mostra uma desconexão entre o sujeito e o social, sugerindo o não favorecimento ao laço social, pois não há relação descrita entre o agente do discurso e o Outro. Paradoxal também por não possibilitar uma circularidade entre as posições discursivas, já que permite a relação direta — não mais mediada — entre o objeto de gozo e o sujeito que, neste caso, torna-se consumidor. Outra comparação possível está na divisão entre os quatro discursos, sendo que de um lado estariam os da impotência, como os discursos da histérica e da universidade, enquanto de outro estariam os da impossibilidade, como os do mestre e do analista. Neste sentido, o discurso do capitalista seria uma fuga a estas duas posições gerais, oferecendo-se como uma solução à castração; ou melhor, uma rejeição a ela. Ou seja, para não saber que há um menos, característico da condição humana, faz-se um empuxo ao gozo, caracterizado pela oferta insistente do objeto de satisfação, prometendo constantemente um “a mais”.

Este breve mergulho pelos complexos discursos formulados por Lacan permite voltar ao início do texto. Pois é ao compreender como estrutural a relação do sujeito com a linguagem e, consequentemente, com o Outro, que se torna possível pensar o que acontece para que a informação, como objeto de consumo, possa exercer tal poder de influência, levando ainda em conta estar mediada e organizada através das diversas redes sociais, centralizadas na materialidade de um smartphone. Esta relação aparenta constituir um encaixe tão perfeito entre a falta estrutural e a oferta de um objeto “antifalta” que gera uma captura subjetiva a ponto de a única saída ser, realmente, o real da angústia no corpo, seja ela denominada de ansiedade ou pânico.

Não é de se estranhar que não sobre tempo para se ter tempo. Não é absurdo pensar que a resposta para a pergunta sobre como estão as coisas na vida de cada um seja, quase obrigatoriamente, “na correria”, “na luta” ou “sabe como é: mais é mais”, como se os pontos de parada fossem o novo tabu. Com exceção da pausa para descansar e retomar o trabalho, qualquer intervalo é proibido ou, então, vivido com a devida culpa. O ócio torna-se arqui-inimigo da produção, algo a ser evitado como perda de tempo — aquele mesmo tempo que não se tem mais; uma impossibilidade em uma vida que não pode parar. Da mesma forma que não é permitido qualquer intervalo entre o desejo e a “saciação”, não há espaço nem para ansiar por algo. Qualquer ponto de parada é preenchido com um pequeno mergulho pelas redes, uma conversa resumida ou uma postagem despretensiosa.

Neste contexto, a própria angústia se tornou ansiosa, pois, se na música o vídeo matou as estrelas do rádio, as redes sociais mataram o ócio.

Isto não é apenas uma fórmula para uma sociedade do cansaço, para citar novamente o filósofo coreano, mas uma subversão do ócio através de uma lógica de produção incessante que impossibilita necessárias articulações simbólicas. Construir esta espécie de higienismo sobre o viver mais se assemelha a uma forma de viver sem viver. Ou, como aponta Ernesto Bucci, cria-se uma estrutura superindustrial na qual todas as relações do sujeito se tornam trabalho realizado como se fosse diversão; o sujeito trabalha para as mídias sociais, para a geração de informação/conteúdo, sem nem mesmo estar ciente disso. Vende o seu tempo, gera valor, sem saber que o faz e tampouco receber algo por isto.

É por isso, portanto, que o resgate do ócio, dos intervalos, das articulações que respeitam o tempo necessário de cada um se fazem urgentes. O silêncio numa análise tem sua função, assim como os espaços não preenchidos permitem que os significantes se articulem e não pulem sobre o sujeito como um enxame enfurecido em pura angústia. É preciso viver o tempo de uma fala, o tempo de uma produção artística, de um livro e, quando necessário, de uma análise, para que seja possível existir o ócio e, quem sabe, até mesmo para viver sem que a vida passe despercebida entre posts e likes.


PS: Se você chegou até o final destas linhas, felicite-se por ter superado o que hoje é considerado um texto longo. Quem sabe possa até aproveitar um pouco de ócio fora das redes… Será?!

¹ Para mais detalhamento sobre os quatro discursos de Lacan, sugiro a leitura de Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas, de Christian Dunker, Clarice Paulon e J. Guilhermo Milán-Ramos, assim como o seminário de Lacan sobre o texto de Edgar Allan Poe, “A Carta Roubada”.